BURBURINHO NA CALADA DA NOITE

Crônica do Livro: “Causos Clínicos”

"Burburinho na Calada da Noite"

Autor: Fernando Ortiz

O plantão mal começara e muitos já eram os pacientes que se aglomeravam, esperando atendimento médico. Eu, ainda residente em neurologia, aflito, comentava com os colegas que aquela seria mais uma noite tumultuada.

Na enfermaria de clínica médica, o número de pacientes era ainda maior — sem contar a pediatria e as demais enfermarias. Misturavam-se pacientes que realmente precisavam de pronto-atendimento com outros tipicamente ambulatoriais.

Porém, naquela fatídica noite, após uma maratona de atendimentos, exausto e esperando contar com a cumplicidade complacente do corpo de enfermagem, fui tentar repousar no dormitório dos plantonistas.

Mas não demorou muito: uma implacável enfermeira chamou-me para mais um atendimento. Tratava-se, segundo ela, de uma senhora de idade avançada que, inflexível, insistia em ser atendida. Ponderava ainda a enfermeira que aquela seria a última paciente daquela inesquecível noite.

Ciente de que não se tratava de um caso de urgência, fui ao encontro da tal senhora — entre um bocejo e outro. Já eram altas horas de uma madrugada fria. Abri a porta da sala de espera e, automaticamente, perguntei:

— Quem é o próximo?

Levantou-se da cadeira uma senhora um tanto irritada pela minha demora e, de imediato, lançou-me um olhar fulminante. Sem titubear, arrisquei:

— Vamos entrar — eu disse.

Iniciei as perguntas de praxe da anamnese. Ela olhava-me com desconfiança e mal respondia às minhas perguntas. Terminado o exame físico, informei:

— A senhora tem isso, mais isso e mais isso. Vou receitar alguns medicamentos, mas, se não melhorar, terá que retornar para uma nova consulta.

Ela balançou a cabeça negativamente.

— Não.

— Não? Por quê? — indaguei.

— Eu não vim até aqui por causa dessas baboseiras! — retrucou a senhora.

Apoiei a cabeça em uma das mãos, franzi a testa e, após um longo bocejo, insisti:

— Então o que trouxe a senhora, a esta hora da madrugada, ao pronto-socorro?

Ela retrucou de imediato:

— O doutor ainda não percebeu todo o falatório? Pois eles não me deixam dormir!

Intrigado, resolvi inquirir a paciente:

— Mas... do que a senhora está falando?

Ela, do alto de seus setenta anos, com altivez, arrematou:

— São eles, doutor! — insistiu. — São eles! Ficam conversando a noite inteira e não me deixam dormir!

— Ufa! — respirei aliviado, achando que finalmente havia compreendido o drama que afligia aquela senhora. Arrisquei meu palpite:

— São seus vizinhos, não é? São eles a causa da sua insônia? É simples: basta um telefonema para a Delegacia de Polícia mais próxima, e pronto, estará resolvido o problema!

A doce senhora, de repente, pôs-se de pé e, com o dedo em riste, fulminou:

— Bem se vê que o senhor ainda é estudante de medicina! Se fosse realmente médico, já teria entendido a extensão do meu sofrimento!

Meio sem jeito, tentei contornar a situação e expliquei que eu era médico-residente daquele hospital, e que naquela noite estava de plantão no pronto-socorro. Disse que minhas intenções eram as melhores possíveis e, tentando minorar seu sofrimento, arrematei:

— Minha senhora, trata-se de um caso clínico simples. Isso tem cura fácil. Logo que a senhora chegar em casa, ficará boa!

Arrisquei-me, mas o argumento foi em vão. De pronto, retrucou a já indócil senhora:

— Boa uma ova! Isso porque não está acontecendo com o senhor! Eu já lhe disse e repito: eles ficam conversando a noite inteira e não me deixam dormir!

Resolvi, naquele momento — e quase vencido pelo sono —, dar um basta na situação e questionei:

— Eles quem?!

Ela fitou-me demoradamente e, balançando a cabeça com leve desdém, respondeu com naturalidade:

— Ora, meus joelhos, moço! Quem mais poderiam ser, a não ser esses dois? Eles resolvem tagarelar entre si a noite inteira e não me deixam dormir! Contam um para o outro cada causo cabeludo, que fico até ruborizada com tanta sem-vergonhice!

Enfim, sorri amarelo e outra vez bocejei — desta vez, aliviado. Estava quase amanhecendo. Era o fim de mais um plantão.

Neste caso, lembrei-me de Alois Alzheimer, que descreveu, em 1907, em uma mulher na terceira idade, uma forma de demência senil de evolução lentamente progressiva...

Mas isso é outra história!


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Adendo:

O fato ocorreu em um plantão de um hospital de Ribeirão Preto (SP), quando, à época, eu era médico-residente em neurologia — nos idos de 1984.

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