A alegoria do livro "O Processo", de Franz Kafka, remete ao pesadelo de um cidadão a quem é negado o direito de saber os reais motivos do crime pelo qual é acusado, o que impossibilita sua defesa.
O ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Paulo Brossard escreveu em "O Impeachment" (1965), obra fundamental, que "o fato de ser o impeachment processo político não significa que ele deve ou possa marchar à margem da lei".
Josef K., o personagem de Kafka, viveu os tormentos de um inquisitorial sem pé nem cabeça. No caso do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o ritual da tese do "conjunto da obra", acusações desconexas sem o rigor da prova, prevaleceu na Câmara, impedindo, até o momento, o direito de defesa.
No caso do impeachment de Fernando Collor. A proposta de impedimento só prosperou após serem colhidas, por uma CPI Mista do Congresso, provas de contas fantasmas administradas por PC Farias(Tesoureiro da campanha de Collor), que, entre outros delitos, repassava dinheiro para cobrir gastos pessoais, inclusive para subsidiar despesas da residência oficial (Casa da Dinda).
O processo em curso é golpe exatamente por isto: não apareceram provas de que Dilma tenha cometido crime de responsabilidade.
A primeira parte do golpe foi dirigida pelo notório Eduardo Cunha, presidente da Câmara que acolheu por vingança pessoal uma denúncia inepta de crime de responsabilidade. O insuspeito Miguel Reale Júnior, um dos autores da denúncia, chamou a esta acolhida de "chantagem explícita".
Por esse escárnio, nunca, desde os tempos da ditadura, a imagem do Brasil no exterior desceu tão baixo. Os órgãos mais respeitados da imprensa internacional são uníssonos: um golpe parlamentar encontra-se em plena execução no Brasil e a primeira etapa foi perpetrada no último domingo (17). Para o golpe se consumar, contudo, precisa obter a cumplicidade do Senado.
E nós acreditamos que ele pode ser derrotado no Senado. Basta seguir a legislação, especialmente a decisão ao mandado de segurança 34.130/2016, que elucidou o objeto de mérito do impeachment, os dois temas sobre os quais se devem formar juízo.
São eles: "seis decretos assinados pela denunciada no exercício financeiro de 2015 em desacordo com a LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] e, portanto, sem autorização do Congresso Nacional, e a reiteração da prática das chamadas pedaladas fiscais".
Na edição dos decretos, a pedido de universidades e do próprio TCU (Tribunal de Contas da União), e depois avaliados por órgãos de controle, a presidente não violou a lei orçamentária. Não houve aumento de despesas, mas simples remanejamento de recursos, sem alteração na meta fiscal. O limite total para a execução de cada órgão é definido pelo contingenciamento, não pelos decretos questionados.
A acusação soa estapafúrdia quando se constatada que o montante contingenciado em 2015 (R$ 79,8 bilhões) foi o maior desde o início da Lei de Responsabilidade Fiscal (2000).
Já a pedalada fiscal resume-se à acusação de que o governo federal atrasou os pagamentos do Plano Safra (programa agrícola) em 2015.
A lei 8.427/92, que "dispõe sobre a concessão de subvenção econômica nas operações de crédito rural", é clara. A presidente não participa de nada. A atribuição de gestão está a cargo do Ministério da Fazenda, da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário e do Conselho Monetário Nacional.
As remissões até a um torturador, menos à denúncia, desmoralizaram a votação do impeachment. Auguro que o Senado possa fazer diferente do vexame da Câmara.
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