Luiza Erundina |
Em 6 de dezembro, exatos seis dias após completar
78 anos, a deputada federal Luiza Erundina (PSB) pisará no plenário da Câmara
dos Deputados para em cerimônia planejada por ela, a casa devolverá
simbolicamente, em uma sessão de posse embalada pelo Hino Nacional interpretado
por um cantor lírico, o mandato aos deputados cassados durante a ditadura. Os
parlamentares, ou suas famílias, receberão o diploma e o broche típicos. “É uma
forma de a Câmara devolver ao povo o mandato que os torturadores usurparam de
seus representantes”, diz Erundina, e complementa: “E é o mínimo que podemos
fazer agora, enquanto não aprovam a mudança na lei da anistia.”
Erundina não desiste e desafia o silêncio do Congresso sobre o tema mais espinhoso da
história brasileira. A sessão simbólica é só um exemplo. Inconformada com a
decisão do Supremo Tribunal Federal de 2010, por exemplo, que rejeitou o pedido
da OAB por uma revisão na Lei da Anistia que desconsiderasse como “crimes
conexos” tanto a ação de agentes da repressão quanto a da luta armada, a
parlamentar decidiu, no ano passado, redigir um projeto. Pretendia alterar o
artigo 1º da lei de 1979. A mudança retiraria da anistia os agentes públicos,
torturadores pagos pelo Estado para sequestrar, torturar e assassinar cidadãos,
e permitiria sua punição, “o que aconteceu em qualquer país decente, menos
aqui”. Mas o PL foi apreciado pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa,
onde caiu nas mãos do conservador Hugo Napoleão (DEM-PI), que o rejeitou, e logo
nas de Vitor Paulo (PRB-RJ): a decisão foi idêntica. O projeto estacou,
ignorado, na Comissão de Constituição e Justiça.
Quando a Comissão Nacional da Verdade foi anunciada
como a panaceia dos males históricos do País, Erundina saiu novamente ao ataque.
No primeiro artigo do texto sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em
novembro de 2011, viu no dever de “promover a reconciliação nacional” um insulto
às vítimas. “Que reconciliação é essa? Vai reconciliar torturadores com
perseguidos políticos, em vez de puni-los? A anistia foi uma farsa. O poder
estava com os militares. Sem mudar a lei, a comissão vai ser a continuação da
farsa.” Como a lei parece longe de ser mudada, a deputada trilha um caminho
próprio. Para pressionar o Congresso e o governo a investigar os agentes da
repressão, criou a Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça.De oitivas de
depoimentos, como a do ex-agente de informação Marival Chaves, a audiências com
testemunhas da guerrilha do Araguaia, a subcomissão tem enchido pastas com
documentos. “Mas não queremos ficar só no nível da memória. Queremos processos
judiciais.”
Figura histórica na luta por
desmascarar os partícipes da ditadura, a paraibana de Uraiúna esteve à frente da
investigação que se seguiu à descoberta da vala clandestina no Cemitério de
Perus, em São Paulo, em 1990. À época, criou uma Comissão de Acompanhamento das
Investigações, para fiscalizar a ação da polícia e colaborar com a CPI da Câmara
Municipal. Um paralelo com a atual situação das comissões da verdade é
inevitável. Agora, ela quer apurar as violações de direitos humanos com
motivação política contra parlamentares, caso do deputado do PTB Rubens Paiva.
Expoente da investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou o
recebimento ilícito de dólares por generais ligados ao golpe, Paiva não só foi
cassado como, em 1971, foi levado por militares. O Exército divulgou uma nota
fantasiosa, na qual atribuía o sumiço a um resgate dos companheiros
“terroristas”. O que as testemunhas disseram depois é que ele morrera entre as
torturas no DOI-Codi na “Casa da Morte” em Petrópolis. Seus restos mortais
jamais apareceram.
E diz a deputada:“O Poder Legislativo foi vítima e
cúmplice da ditadura” e continua com a sua ilação:“Vítima porque foi fechado
três vezes pelos ditadores. Cúmplice porque não reagiu, porque os que lá estavam
não tinham compromisso com a democracia, e porque aprovou essa lei manca de
anistia. A verdade é que nunca se fez nada.”
A história do Congresso durante a ditadura foi
pouco feliz. Em 9 de abril de 1964, a junta militar que assumiu o poder no
Brasil após o golpe decretou o que chamou de “Ato Institucional”. Além do
anúncio de uma “revolução” que instaurasse o “poder constituinte” por meio das
armas, o ato anunciava a cassação de 46 deputados federais: gente como Plínio de
Arruda Sampaio, relator da Reforma Agrária, Leonel Brizola, articulador da
Frente Ampla, e o próprio Rubens Paiva. O Congresso foi alijado de suas
prerrogativas mais básicas, mas era só o começo. Em 1966, o general Castello
Branco decretou o AI-2, que acabava com os partidos e agrupava o espectro
político em duas legendas (Arena e MDB). Outros cinco deputados foram cassados e
o Congresso, fechado por um mês. O AI-4 obrigaria os deputados a se reunir às
pressas e encenar a aprovação de uma nova Constituição, que entraria em vigor em
1967 com a posse de Costa e Silva, “candidato eleito” de forma indireta por 294
votos pelo mesmo Congresso arenista.
Não que todos os
parlamentares sobreviventes à limpeza ideológica da ditadura se coadunassem com
os desmandos militares. Num ato de ousadia incomum à cordata conduta que
mantinha, a Câmara se negou, por exemplo, a conceder a licença pedida pela
Presidência para que o deputado Márcio Moreira Alves fosse processado pelo
discurso no qual questionara até quando o Exército seria “valhacouto de
torturadores”. Foi um momento de orgulho, logo abafado quando o AI-5 entrou em
vigor: a Constituição foi revogada e o Congresso, fechado por mais de nove
meses. Uma terceira suspensão dos trabalhos parlamentares ainda se daria entre
1º e 14 de abril de 1977, espécie de pá de cal na imagem da instituição. E em
1979, a controversa lei da anistia de “dupla mão” foi aprovada. Um estrago que
acabou soterrado com um silêncio, para muitos, incômodo.
“Quando o STF negou a revisão da lei da anistia,
usou como argumento principal o fato de o Congresso ter aprovado a lei”, afirma
Erundina. “Pois se a Câmara aprovou essa lei, é prerrogativa da própria Câmara
aprovar a revisão da lei. E, enquanto não aprovam, precisamos lembrar a memória
dos poucos que se posicionaram contra a ditadura. É nossa responsabilidade. Não
podemos fugir dela.” Uma história que deve ser contada também por uma exposição
de fotos sobre o período e um painel do artista Elifas Andreato nos moldes de
uma “Guernica brasileira”. Um livro com biografias dos cassados será
lançado.
Crítica da Comissão da
Verdade pelo seu prazo curto (dois anos) e raio de ação reduzido, Erundina
insiste nas comissões paralelas que pipocam nos estados e municípios e na que
ela mesma preside. Longe das pressões existentes no Executivo, a deputada se
guarda o direito (e o dever) de lutar no Congresso para expor as entranhas da
ditadura. “Não queremos produzir mais um relatório encadernado para guardar no
Arquivo Nacional, que é o que vai acontecer com a Comissão da Verdade. Queremos
processos judiciais, queremos punir os torturadores”. Só isso pode evitar que
essa “página infeliz da nossa história” se transforme em uma “passagem desbotada
na memória das nossas novas gerações”, em uma paráfrase de Chico Buarque. “Ou se
faz isso agora ou não se fará nunca mais. No Congresso, há forças que não têm
interesse em resgatar a história. E no governo… eu sinceramente esperava outra
postura da presidente Dilma. É uma pena.”
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