O CORINGA ENTRE NÓS

Assisti "Coringa" nesta segunda-feira, juntamente com minha esposa Marília, admito que não é um tipo de filme que normalmente me levaria à uma sala de cinema. Mas, também confesso que há tempos não saía de uma sala de cinema tão incomodado. Creio ser essa uma das funções principais da arte: incomodar para acordar. A arte, por vezes, com beleza e emoção, incomoda por nos apresentar um tema indigesto com o qual, como sociedade, precisamos lidar. Coringa é certamente indigesto.

Coringa não fala de um louco; fala do processo de enlouquecimento que uma sociedade insana é capaz de produzir através do massacre cotidiano que impõe aos seus cidadãos mais fragilizados. Portanto, fala de todos nós.

Enquanto a medicina e a ciência continuam buscando uma suposta etiologia para a loucura, nos confrontamos com uma importante questão: até que ponto a loucura é um produto social? Descaso, desprezo, abusos, humilhação, pobreza endêmica, exposição contínua à violência; esses são todos aspectos sociais envolvidos no processo do enlouquecimento. São todos produtos de Gotham City, ou de qualquer outra metrópole da nossa realidade.

Não tenho dúvidas, há um Coringa muito mais próximo de nós do que supomos ou gostaríamos de admitir, simplesmente porque, sendo humanos, estamos todos expostos ao ambiente potencialmente enlouquecedor das Gotham Citys que criamos. Não estou me atendo às explosões de violência do personagem no filme, mas sim ao fato de que a realidade social massacrante é capaz de tornar a vida tão insuportável a ponto de tragar a integridade psicológica do indivíduo.

O filme mostra um indivíduo que revida com violência as mesmas violências e humilhações que sofre repetidamente. Mas, na vida real, os loucos quase nunca revidam, eles adoecem; seu delírio é a forma que encontram para lidar com o absurdo do cenário de Gotham City. São, ao contrário, as pessoas ditas “normais" que mais violentam e que dão aval para a violência institucionalizada.

E são estes homens considerados "normais" que mataram 100.000.000 de seus semelhantes normais nos últimos cinquenta anos. Haja visto, que em nosso país, também existe um governante inepto com capacidade de discernimento quase nula, com discurso sórdido e repugnante, com linguagem profundamente desqualificada e superlativamente grosseira e boçal, própria de quem possui reduzidíssima capacidade intelectual e tosco universo vocabular. Apregoa e estímula o ódio e a violência todos os dias.
É triste, é verdadeiro!

No caso do filme, não se trata de glorificar a loucura, que é uma condição de sofrimento humano das mais graves, mas sim de relativizar a dita normalidade, dado que cidadãos "normais" de várias metrópoles mundiais produzem Coringas em série entre nós.

A agonizante transformação de Arthur Fleck em Coringa me fez lembrar de uma antiga frase de um pensador indiano Jiddu Krishnamurti: “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”.

Enquanto o Coringa ri, nós adoecemos.




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