Lampião entrevistado por "Novidade"

Antologia que reúne escritos de Graciliano Ramos sobre cangaço atribui-lhe entrevista fictícia com Lampião. Publicado sem assinatura no semanário "Novidade" e inédito em livro, o texto traz marcas que o associam ao autor de "Vidas Secas", colaborador do periódico, no qual pela primeira vez abandonou pseudônimos. 

Como o célebre cangaceiro, o herói legendário do sertão nordestino, encara certas coisas brasileiras: os direitos de propriedade, o progresso, a justiça, a família, o sertão, os coronéis, o cangaceirismo e a sua própria vida
Lampião é hoje uma das criaturas mais interessantes do Nordeste. Não apenas do Nordeste: do Brasil todo*. Vagamente conhecido há dez anos em alguns municípios sertanejos, pouco a pouco foi adquirindo um prestígio terrível e tornou-se famoso e temido em vários Estados. Cresceu extraordinariamente, entrou no folclore, na poesia e no romance. É um nome nacional. Ultimamente, com a projetada aventura do capitão Chevalier1, o célebre cafuzo está na ordem do dia. - Com o intuito de bem servir aos seus bons fregueses e amigos, como se diz na gíria de negociantes, 'Novidade' imaginou entrevistar Lampião. Para isso pediu o concurso de alguns oficiais de polícia, mas todos eles, por modéstia, recusaram a incumbência, alegando que não são repórteres. - Na impossibilidade de obtermos um encontro com o notável salteador, recorremos a um truque: um dos nossos redatores, antigo sócio de centros esotéricos, deitou-se, acendeu um cigarro, fechou os olhos e conseguiu, por via telepática, a seguinte entrevista.
 
Lampião recebeu-nos com o punhal na mão direita e o rifle na esquerda. Vestia roupa de mescla, calçava alpercatas, trazia cartucheira, chapéu de couro enfeitado, camisa aberta, rosário, retrato do padre Cícero na lapela. Ofereceu-nos uma pedra para descansar, sentou-se numa raiz de baraúna e perguntou:

- Que anda fazendo por esta zona?

- Aqui marombando, capitão, assuntando, tomando a maçaranduba do tempo. Eu sou representante de "Novidade". 

- "Novidade"? Pois eu não quero saber de novidades. Aqui ninguém conta novidades. Foi por causa das novidades que o Sabino2 levou o diabo. E não gosto de gente que assunta. O senhor é macaco ou bombeiro? 

Sentimos um baque no peito. 

- Deixe disso, capitão, não se afobe. "Novidade" é um jornal. 

- Um jornal? 

- Sim, senhor, um papel com letras para embromar os trouxas. Mas o nosso é um jornal sério, um jornal de bandidos. É por isso que estou aqui. Um jornal sisudo. Temos colaboradores entre as principais figuras do cangaço alagoano, temos correspondentes...
Lampião mostrou a dentuça e grunhiu:

- Uhn! Anda procurando um chefe.

- Ah! não! protestamos. Já temos. O lampionismo em literatura é diferente do seu. O que eu quero é entrevistá-lo, entende?

- Que quer dizer isso?

- É uma tapeação. O senhor larga umas lorotas, eu escrevo outras e no fim dá certo. É sempre assim. Às vezes, como agora, nem é preciso que a gente se encontre. 

- Por quê? 

- Por quê? Porque se eu fosse escrever o que o senhor diz não escrevia nada.
Lampião matutou, balançou a cabeça e concordou.

- Bom. Vamos começar. Pegue no lápis.
E começamos: 

- Quais são as suas ideias a respeito da propriedade?
O amável facínora tirou da patrona um pedaço de fumo e entrou a picá-lo com o punhal.

- Eu, para falar com franqueza, acho que essa história de propriedade é besteira. Na era dos caboclos brabos, como o senhor deve saber, coisa que um sujeito agadanhava era dele. Depois vieram os padres e atrapalharam tudo, distribuindo terra para um, espelho para outro, volta de conta para outro... Fechou-se o tempo e houve um fuzuê da peste, que está nos livros. Mas meu padrinho padre Cícero não vai nisso. E eu também não vou. Isso por aqui é nosso: gado, cachaça, mulher, tudo. É de quem passar a mão, entende? 

- Perfeitamente. E que me diz do progresso? 

- De quê? 

- Do progresso, da civilização. Roupas bonitas, sapatos, frascos de cheiro, conhaque, doutores, vitrolas... 

Lampião fez um cigarro de palha de milho, tirou o binga, bateu o fuzil e pôs-se a fumar. Depois falou:
- Sapatos, como o senhor vê, não uso, mas o conhaque eu bebo. E gosto das vitrolas, são engraçadas. Quanto aos doutores, até hoje não me fizeram mal. Estudam nos papéis e falam muito. Creio que são uns inocentes. Enfim, não tenho queixa da civilização.

- Como considera a justiça? 

- Aqui no sertão, quando um camarada tem raiva de outro, toca fogo nele. E vai um filho do defunto, agarra um mosquetão e uma rapadura, esconde-se por detrás dum pau, dorme na pontaria, espera 15 dias e queima o sobredito. É a justiça mais usada e não falha. Temos também a dos autos, demorada, mas que não é má, porque os promotores se enrascam sempre e os jurados são bons rapazes. 

- Sua opinião sobre a família?

- De quem? 

- De todo o mundo. A família em geral. A mulher, os meninos, a rede, o baú, o rancho, o papagaio, o saguim, a trempe, as panelas, isso tudo.
Lampião coçou o queixo e resmungou: 

- Para dizer a verdade, nunca pensei nisso. E o senhor é danado de fuxiqueiro. Mulher, meninos... Eu sei lá! Quando um sujeito é miúdo, nunca deve dizer que os filhos que tem em casa são dele. E quanto a mulher, hoje a gente pega uma, larga amanhã, arranja outra, casa aqui, descasa acolá, e assim vamos indo. Isso de mulher é bichinho que não falta. E se um homem fosse se lembrar de todas com quem fez vida, estava arrumado. 

- A sua vida assim agitada lhe dá grandes lucros, capitão?

- Lucros, lucros, não são lá grande coisa. Nem roubo hoje dá lucro. Não se tem mesmo o que roubar. Isso de dinheiro aqui, homem, uma bobagenzinha de nada. Nesse tempo parece o povo até nem aprecia ter dinheiro pra gastar tanto quanto se gasta com a vida de hoje. Agora o que eu não faço, nem pelo diabo, é deixar minha vida de agora pra ir trabalhar na enxada, que eu não sou...
Lampião estacou, passou o lenço pelo pescoço. 

- Que calor danado!
E nós, aproveitando a deixa: 

- E com todo esse calor, o senhor gosta mesmo do sertão? 

- Gostar, eu gosto, moço. Isso de calor é coisa com que a gente se acostuma depressa. Um coronel noutro dia me disse que o povo da cidade acha isso ruim, porque é deserto e quente por demais. Cidadãos que nunca viram o sertão falam dele como se tivessem vivido nele uma porção de tempo. É isso que estraga essa terra, não é outra coisa não. 

- E relativamente aos coronéis, que pensa o senhor? 

- Homem, eles até não são ruins. Há realmente alguns metidos a bestas, mas também existem pessoas direitas. Tenho boas relações com um bando deles.
Estava finda a nossa missão. Despedimo-nos.

- Muito obrigado, capitão Virgulino. E adeus. Desejo-lhe muitas felicidades nos seus negócios.


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Notas:
 
* Originalmente publicado, sem assinatura, no semanário "Novidade" (Maceió: Livraria Vilas-Boas, n. 6, p. 7, 16.mai.31), este artigo sairá em livro pela primeira vez na coletânea "Cangaços", que reúne textos de Graciliano Ramos sobre o tema, que será lançado pela Record. A autoria é atribuída ao alagoano pelos organizadores da antologia, Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla. Para publicação, foram mantidas somente as notas com informações essenciais à compreensão dos fatos citados no texto.


1. Carlos Chevalier, oficial do Exército que utilizou armas, sistemas de rádio em comunicação com muitos policiais e até aviões para capturar Lampião.


2. Sabino Gomes, homem de confiança de Lampião, que, no bando, ocupava o posto de lugar-tenente. Foi morto em março de 1928, na fazenda de Antônio Piçarra, no Cariri cearense.

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