Como era o Departamento de Censura e Diversões Públicas na ditadura

Geová Lemos Cavalcante - jovem
Por quase dois anos - entre maio de 1970 e novembro de 1971 - o delegado de polícia Geová Lemos Cavalcante, hoje com 71 anos de idade e aposentado, era dono da última palavra dentro do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), em Brasília. Era ele quem, do 4º andar do edifício-sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), espalhava o medo entre os produtores culturais e artistas, ao avaliar, classificar e muitas vezes vetar peças de teatro, filmes, músicas e telenovelas. Foi dele, por exemplo, o veto a “Como era gostoso o meu francês” (1973), de Luiz Carlos Barreto. Nesta entrevista, Cavalcante narra com detalhes o dia a dia da Censura, diz que a pressão vinha de todos os lados, e afirma que atividade da censura era “rotineira e tediosa, sem qualquer envolvimento emocional”. Sob seu comando trabalharam 30 técnicos, entre eles muitas esposas de diplomatas.

Como era a rotina no Departamento de Censura na sua época?


A Censura Federal funcionava no 4º andar do BNDE em Brasília. Além do espaço para as atividades administrativas, dispunha de um amplo auditório e mais quatro salas menores onde eram projetados filmes para exame. O mobiliário era simples, até mesmo espartano. E o horário de trabalho era o comum: das 8 às 12 h e das 14 às 18h. O setor que rotineiramente ia além desse horário era o responsável pela expedição dos certificados. Para evitar fraudes, os certificados liberatórios eram assinados pessoalmente por mim. E, dependendo da demanda e dos prazos, isso acontecia após o expediente, em casa. O chefe da Censura não tinha qualquer privilégio, sequer dispunha de carro oficial privativo. 

Havia pressão no seu gabinete?

Havia uma movimentação intensa de representantes das classes: empresários teatrais, funcionários de emissoras de televisão, mas não havia pressão direta por parte de militares ou civis, pelo menos em relação a mim. Grupos de artistas se dirigiam, sempre, à Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República e ao Ministério da Justiça, e eu recebia notícias desses contatos através do Diretor Geral da Polícia Federal. O caso mais emblemático de pressão aconteceu com o filme “Dr. Jivago”. A Censura liberou para exibição para maiores de 18 anos. Mas Harry Stone, o “embaixador de Hollywood”, demonstrou seu inconformismo e conseguiu obter a liberação para maiores de 16 anos. Segundo ele demostrava estatisticamente, a censura aplicada representava uma enorme diferença em ganhos financeiros.

Havia reclamações no departamento?

Cada emissora tinha um representante ou procurador em Brasília, funcionando como um despachante. A Globo tinha um procurador, que pessoalmente se deslocava para Brasília conduzindo o material a ser exibido. Ele insistia na rapidez dos trabalhos e, até certo ponto, lhe assistia razão. Com relação ao cinema, vez por outra, o Sr. Harry Stone, que defendia os interesses de Hollywood, ia acompanhar pessoalmente o exame dos filmes que poderiam ser sucesso de bilheteria. Quando era o caso, ele orientava seus representantes para exercerem o direito recursal junto ao Diretor Geral ou ao Ministro da Justiça.

Como sua equipe trabalhava?

Trabalhavam na Censura mais de 30 funcionários, incluindo técnicos. Pelo volume de trabalho, duas secretárias cuidavam das tarefas de atendimento. D. Ruth Nogales para o setor interno, e D. Marilza Costa e Silva para o setor externo. Os procedimentos censórios eram realizados por dois técnicos e, quando não havia consenso entre eles, o processo era redistribuído para uma equipe de três para ser reexaminado. Ocorria, no entanto, que, na prática, mesmo havendo consenso na primeira fase, o chefe da Censura recorria a outra equipe. O critério para reexames fundava-se somente no subjetividade.

Qual era o perfil dos censores?

Eles eram recrutados entre possuidores do curso de Comunicação Social e de Direito. A grande maioria, oriunda da Universidade de Brasília (UnB). No grupo, havia esposas de diplomatas, com elevado nível cultural e fluência em vários idiomas. Pessoas com vivência demorada no exterior. Figurava entre os contratados, por exemplo, o bacharel Reginaldo Oscar de Castro, futuro presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Quantos certificados foram expedidos sob sua gestão?

Não posso quantificar o volume, mas elevou-se sem qualquer dúvida a milhares. E todos os processos tinham meu despacho final.

O senhor nunca foi pessoalmente pressionado?

Pessoalmente, recebi por duas vezes o sr. João Saad, Diretor da Bandeirantes, e os artistas Chico Anísio e Ronaldo Golias, que foram reclamar de possíveis excessos cometidos pelos censores do Rio e São Paulo.

E havia recurso possível ante o veto?

Todos os atos de interdição de peças teatrais e filmes eram publicados no Diário Oficial da União para ensejar pedidos de reconsideração ou recursos. Nunca um ato foi questionado na esfera do Judiciário. Tinha-se a preocupação em exercer a atividade dentro dos moldes constitucionais, tanto que uma portaria minha foi publicada na renomada “Revista de Direito Administrativo”, da Fundação Getúlio Vargas, como exemplo de ato jurídico irretorquível.

Mas era possível mudar uma decisão?

Como exemplo de pressão que resultou benéfica para os interessados, cito o filme “Como era gostoso o meu francês”, que foi interditado por mim pelas cenas de nu frontal, mas, logo após minha saída, Luiz Carlos Barreto, o produtor, por via administrativa e aceitando cortes determinados, obteve sua liberação.

Como era o lado emocional do chefe da Censura?

A atividade censória consistia essencialmente em classificação por faixa etária, denotando ser uma atividade rotineira e tediosa sem qualquer envolvimento emocional.

 

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